terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

A Fonte da Vida


Desde de a pré-história, o Homo Sapiens vive em comunidade. As organizações sociais se modificaram e tornaram-se mais complexas ao longo do tempo. Esta “evolução” social ocorreu em função de que o Homo Sapiens, a partir da revolução cognitiva, há 70 mil anos, adquiriu a capacidade de criar ficções. Estas ficções seriam nosso sistema simbólico. É sensível a gama de simbolismos que diariamente tratamos sem percebermos como criações simbólicas. Os títulos e instituições sociais como o padre, a prefeitura, as nações, os municípios, o dinheiro etc. São exemplo de construções sociais que não existem fora de um sistema simbólico. A complexidade deste sistema é tamanha que compele-nos a naturalizar estas construções simbólicas, dotando-as de personalidades, como é o caso das “pessoas jurídicas”!

Os monumentos são, de certa forma, a materialização do próprio simbolismo. Assim como é a Fonte Imperial. Um monumento que tem expressão identitária e é apropriada pela comunidade como símbolo de Santo Antônio da Patrulha. Na historiografia local, segundo narrativas, é testemunho material da passagem de D. Pedro I pela cidade, que teria ordenado sua edificação. É símbolo oficial do Município, tombado pelo IPHAE, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do RS, tombado por Lei Municipal e inventariado pelo IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ou seja, é carregada de simbolismos! Sem falar nos padrões construtivos, na inscrição e adorno mitológico, ou no resultado matrimonial atribuído a quem bebe de sua água!

Geograficamente, é um manancial localizado numa região de muitas colinas, próximo a Mata Atlântica e na periferia de um complexo lagunar e do litoral. É um ótimo lugar para assentamento humano. Muitas pesquisas arqueológicas foram realizadas na área do Município, desde a década de 1960 aos dias atuais, em sítios arqueológicos pré-coloniais, sobretudo, próximos ao Rio dos Sinos. A água é essencial para a vida humana e a Fonte Imperial, ou o chafariz, como se chamava as fontes d’água no século XIX, é fornecedor natural deste recurso. Talvez determinante para o assentamento original de Santo Antônio da Patrulha no século XVIII.

Como em muitas cidades, o chafariz era responsável pelo abastecimento de água potável. Era onde se enchiam as vasilhas. E numa sociedade de meados do século XIX, período de sua edificação, sociedade escravista, quem se dirigia ao chafariz para buscar água? Os escravos ou as escravas! Então, presume-se que os chafarizes eram espaços de socialização dos escravos. Em muitas pesquisas sobre chafarizes do século XIX, constatou-se que também era nos seus entornos o descarte de lixo. A edificação da Fonte Imperial, ao estilo dos chafarizes das grandes cidades, guardadas as proporções, insinua que é mais uma adaptação estilística e higienista de um equipamento urbano, do que uma edificação de monumento. Talvez, filosofando um pouco, sua valoração simbólica, ao longo do tempo, tenha um crescimento inversamente proporcional a sua obsolescência no abastecimento. Assim, nem sempre a Fonte Imperial foi a Fonte Imperial!

Por fim, pesquisas arqueológicas no entorno da Fonte Imperial poderiam evidenciar tanto a passagem de povos pré-coloniais quanto a presença e a socialização cultural de matriz africana. Ainda, poderia corroborar a historiografia local no que diz respeito a passagem de D. Pedro I, a partir dos vestígios materiais escavados. Numa visita realizada no início de 2016, constatei a presença de fragmentos de louças e vidros, na superfície, que rementem ao século XIX. Uma pesquisa sistemática, possivelmente nos forneceria artefatos arqueológicos que contariam um pouco mais da história e carregaria a Fonte Imperial ainda mais de valor simbólico.