É realmente
preocupante a situação da saúde pública no Brasil. Não sou
médico, tampouco da área da saúde. Mas como servidor público
assisto, com muita atenção, as reivindicações da classe médica. Gosto muito de
contextualizar historicamente uma situação sociocultural. No caso
desses últimos protestos e, especialmente, ver a classe média alta
personificada nos médicos e acadêmicos de medicina irem às ruas,
com seus cartazes “politizados”, me lembrou Lima Barreto.
Em sua obra Os
Bruzundangas, publicada em 1923, no ano seguinte da sua morte,
Lima Barreto descreve a cultura política do período conhecido por
República Velha. No país fictício “Bruzundanga” a nobreza se
divide em dois ramos: a nobreza doutoral e a outra que o autor
denomina “palpite”. A descrição da aristocracia doutoral feita
de forma sucinta pelo autor me provocou tamanho espanto que resolvi
citar diretamente, leia:
“A aristocracia
doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas,
chamadas superiores, que são as de medicina, as de direito e as de
engenharia. Há de parecer que não existe aí nenhuma nobreza; que
os cidadãos que obtêm títulos em tais escolas vão exercer uma
profissão como outra qualquer. É um engano. Em outro qualquer país,
isto pode se dar; na Bruzundanga, não. Lá, o cidadão que se asma
de um título em uma das escolas citadas, obtém privilégios
especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos
costumes. O povo mesmo aceita esse estado de cousas e tem um respeito
religioso pela sua nobreza de doutores. Uma pessoa da plebe nunca
dirá que essa espécie de brâmane tem carta, diploma; dirá: tem
pergaminho. Entretanto, o tal pergaminho é de um medíocre
papel de Holanda. As moças ricas não podem compreender o casamento
senão com o doutor; e as pobres, quando alcançam um matrimônio
dessa natureza, enchem de orgulho a família
toda, os colaterais, e os afins. Não é raro ouvir alguém dizer com todo o orgulho: —
Minha prima está casada com o doutor Bacabau.”
É
aceitável que no Brasil, país em desenvolvimento, a saúde pública
esteja, igualmente, em desenvolvimento. Não atribuo todas as mazelas
do SUS à classe médica mas que há uma grande assimetria entre o
médico e o paciente, isto é inegável. Esta assimetria talvez seja
explicada, não pela abismal diferença do poder aquisitivo, mas por
este sentimento aristocrático que permeia a classe médica que é
tão forte a ponto de seus conselhos de classe tentar jogar a
população, o “povo que aceita do status quo”, contra o governo.
Há a ideia entre muitos médicos que trabalhar para os governos é
fazer filantropia, por isso não há controle do ponto, etc. Talvez
esteja aí a raiz da precariedade do serviço público na área da
saúde.
Desculpem-me
a argumentação, talvez panfletária, mas quando se fala em
desigualdade social, o Brasil é um dos exemplos mais lembrados no
mundo. E ver a classe médica que sempre se beneficiou desta
desigualdade social, querendo se posicionar como movimento
reivindicatório, me causa um desconforto como cidadão. E como
cidadão, já percebi que estes médicos (não são todos os médicos)
estão apenas preocupados com mercado que perderão com a atuação
regulatória do Governo para que se democratize a ação médica no
Brasil. Talvez
esteja mais que na hora dos egressos de universidades públicas,
sobretudo das áreas mais necessitadas pela sociedade, como saúde,
como educação, etc., retribuírem a conquista da formação
prestando serviços para o Estado em contrapartida da educação
gratuita de qualidade paga pelos impostos de todos os brasileiros.
Estou certo de que está na hora de ocorrer uma mudança estrutural
em nosso país, para definitivamente deixar de se assemelhar a uma
Bruzundanga, e produzir de fato uma sociedade igualitária,
libertária e fraterna! Onde os filhos de pedreiros possam
naturalmente serem médicos e os filhos de médicos possam ter
orgulho de serem professores por opção. Que estes casos não virem
exemplos de superação e desapego respectivamente. Seria um País em
que as relações sociais se estabeleceriam primeiramente pela
afinidade e não pela classe e/ou estrato econômico. Enfim, um
Brasil onde filhos de médicos pudessem escolher algo melhor do que
perpetuar a sua família entre a “nobreza doutoral” seria um País
realmente inclusivo e pronto para o status de “país desenvolvido”.
Acabei de descobrir que tu tem um blog e não pude deixar de retribuir a visita. Realmente é inegável que essas profissões têm um status diferenciado das demais por inúmeros fatores sócio-culturais. Enquanto eu lia o trecho final de Lima Barreto que citastes, foi inevitável pensar se a união entre a moça e seu cônjuge teriam a mesma aceitação do resto da família se o homem em questão fosse um professor, mas a obviedade da resposta mostra o quão desigual é a carreira desses dois profissionais igualmente importantes para a manutenção da sociedade. Como eu não conheço suficientemente bem a organização da classe médica, não consigo opinar sobre essa nova medida, mas a polêmica dessa questão deixa claro que a máquina do Estado está sucateando o serviço publico como resultado das condições de trabalho e (falta de) perspectivas de crescimento profissional que ele oferece para seus servidores.
ResponderExcluirParabéns pelo texto, Antonio. Ficou muito bom! É legal conhecer mais escritores da nossa região. Um abraço!
Valeu, Felipe. Obrigado pela visita! Me esforço para que meus textos de opinião não fiquem muito extensos, mas eu me empolgo, fica inevitável! hehehe Seria muito fácil criar um blog e "tocar o pau" nos políticos, no governo, na Globo (nesta eu toco mesmo! hehe), etc. Isto seria explorar o discurso fácil de senso comum. Tentar abarcar aspectos sócio culturais implícitos e, por vezes, furuncar alguns tabus, não é tarefa fácil.
ExcluirCreio que o Estado, ou melhor, o Poder Executivo está sofrendo com sussessivas reformas de égide mercadológica. Daí a tendência de arroxo salarial, de comprar o mais barato, da primazia pela quantidade em detrimento da qualidade. Esta reforma não atingiu o Poder Judiciário, por exemplo, quem sabe por representar grande parte daquela "nobreza doutoral". Penso que estes sucateamento em decorrência da colonização do princípio de mercado sobre o princípio de estado, é que tem provocado a repulsa dos médicos (outra parte da nobreza doutoral) em trabalhar com tamanho aviltamento salarial. Mas o que vejo é que em todos os municípios da nossa região, o maior salário é o de médico! Claro que nem se compara com o seu primo rico do judiciário!
Abração!
Essa questão mercadológica é algo que me revolta bastante. Eu sou professor na rede municipal, e me revolta o fato das compras publicas para as escolas serem decididas apenas pelo menor preço. Se nós não equipamos nossas casas com um determinado artigo apenas por que ele é o mais barato, mas aparentemente as instituições de ensino para formar o cidadão podem oferecer qualquer coisa. Como tu disse, isso também afeta a valorização do servidor, afastando aqueles que almejam uma carreira promissora e retendo apenas os "mais baratos".
ExcluirAquele abraço!